Arte por Dave Gibbons ( DC Comics )
Não faz tanto tempo que um velho homem, de olhos cansados, cabelos grisalhos e barba longa, mago consagrado por seus quadrinhos publicados em larga escala , deixou escapar, em uma entrevista ao The Guardian, um comentário carregado de certa amargura pelas péssimas experiências que teve em sua carreira de escritor.“A fandom é uma parte vital da cultura contemporânea”, comentou, “e, ao mesmo tempo, uma praga grotesca que envenena a sociedade com suas obsessões mesquinhas”.
Quando Alan Moore ( Watchmen, Monstro do Pântano e V de Vingança ) proferiu tal comentário, é quase inevitável pensar que a memória dele tenha se recordado de Watchmen. Não apenas à obra enquanto projeto fechado, concebido para existir em sua própria clausura, mas ao fato de que ela ruiu diante do mercado editorial, em geral. O que deveria ser uma publicação fechada acabou por engendrar um imaginário inteiro, expandindo-se muito além do que o autor pretendia, ocupando espaços inteiros da Cultura Pop. E nesse movimento, a distorção tomou forma como uma crítica à figura heroica, construída como um espelho quebrado de um mito cultural, foi prontamente absorvida e reapropriada pela própria indústria que pretendia desnudar, tal qual já foi bem abordado pelo meu colega Higor, em seu artigo aqui, na Jovem Geek.
Arte por Dave Gibbons ( DC Comics )
O que o corpo editorial da DC fez, após o estrondoso sucesso comercial de Watchmen, como todo mercador hábil no jogo capitalista, foi destilar Watchmen até a exaustão. Desde as reimpressões da obra original, lançadas em edições de colecionador que elevavam o preço e convertiam o gesto autoral de Moore em mercadoria de luxo, até as tentativas de “expandir” seu universo, como Antes de Watchmen (roteirizado por Brian Azzarello, J. Michael Straczynski, Len Wein e Darwyn Cooke) e Doomsday Clock (de Geoff Johns), tudo parecia movido pelo mesmo desejo de capitalizar sobre aquilo que foi concebido para ser uma obra a parte e mais autoral. Nesse processo, consolidou-se uma ideia de que o herói deveria ser sombrio, violento, essencialmente corrompido. Sob a sombra de Watchmen, o mercado dos quadrinhos abraçou essa estética do desencanto, fazendo dela o padrão dominante da década de 1980 até meados dos anos 2000, a partir de títulos como The Boys, Kick-Ass e The Authority. Foram mais de duas décadas dedicadas a desconstruir o herói, num ciclo contínuo de falência ética e erosão da bondade genuína.
Em relação a Watchmen, o mercado não mergulhou nas águas profundas da obra, mas preferiu sorver apenas a espuma da superfície. O brilho fácil, a embalagem vendável, a sombra de uma densidade que já não existia mais, de fato. E nessa atitude, talvez o mais grave aconteceu, que foi a deslocação de destinatário. Ao produzir apenas para adultos, apagou deliberadamente aqueles que haviam sido, desde sempre, o público vital da fantasia heroica, sendo elas crianças, adolescentes, jovens, como se o mito pudesse sobreviver amputado de sua origem mais inocente e, portanto, mais fértil.
Dessa distorção nasceu justamente o fandom que Moore criticou ao The Guardian. Não aquele que se limita a acompanhar, a celebrar universos ficcionais e a reconhecer o gesto criativo, mas uma caricatura amargurada, moldada na esteira de Watchmen, da figura doente de Rorschach. É um coletivo que, movido pela frustração, pelos olhos avermelhados e bocas espumantes, encontra no ódio um ponto de convergência: ataca minorias, dissemina discursos rancorosos, como no caso exemplar do movimento Comicsgate. Essa deriva não é alheia ao vazio doméstico — filhos que não ouviram o “não” firme de seus pais transformam-se em adultos que exigem da sociedade inteira a legitimação de suas mesquinharias. O resultado é uma comunidade presunçosa, capaz de irradiar uma influência profundamente nociva no tecido social.
Paralelamente, assiste-se à degradação moral da própria mitologia heroica, tendo em vista que os personagens, antes depositários de ideais, passam a ser consumidos como figuras corrompidas, contaminadas por um niilismo que Moore, aliás, rejeitou publicamente em mais de uma ocasião.
Arte por Dave Gibbons ( DC Comics )
E então se impõe a pergunta: qual seria o contra-veneno para essa assimilação corrompida da figura heroica? A resposta não tardou a aparecer, alguns anos após o impacto de Watchmen, justamente quando o boom dos quadrinhos adultos guiava os rumos da indústria. Veio não de uma reinvenção marginal, mas do maior dos heróis. Foi o Superman quem se ergueu, nos quadrinhos, contra a Elite — figuração quase alegórica não apenas do anti-herói fabricado a partir da leitura enviesada de Moore, mas também do fã niilista, saturado de cinismo, convicto de que personagens de coração puro já não tinham lugar. No confronto, não se travava apenas uma batalha entre superpoderes, mas um embate simbólico: a defesa da possibilidade de um ideal contra a corrosão generalizada do desencanto.
A Elite, em Superman: O Que Há de Errado com Verdade, Justiça e um Futuro Melhor? ( Joe Kell, Lee Bermejo & Doug Mahnke ), encarna não apenas o arquétipo dos anti-heróis convictos de que a justiça só se efetiva pela via do medo e do sangue, mas também, de certa maneira, essa comunidade raivosa que se identificou com o Rorschach de Watchmen, por exemplo. Um grupo que transforma o ato de matar em justiça, travestindo brutalidade de eficiência. Superman, em contrapartida, vê-se pressionado pela própria sociedade a ceder a esse pragmatismo sombrio, embora sua recusa em tirar vidas permaneça inabalável.
Esse grupo — a Elite — é liderado por Manchester Black, personagem britânico criado por Joe Kelly e Doug Mahnke especialmente para essa narrativa. Black encarna, em sua essência, o arquétipo do justiceiro moderno: violento, cínico e moldado por uma ética distorcida que confunde punição com justiça. Sua postura, impregnada do espírito hooligan, legitima a violência como método e a pena de morte como instrumento moral, refletindo a crença de que o medo é a única linguagem capaz de restaurar a ordem. Superman se coloca totalmente contra a esta definição de justiça neste quadrinho.
O confronto com o grupo, porém, atinge um ponto que, para Superman revelar o quanto essa lógica é, em si, cínica e autodestrutiva, o Homem de Aço resolve jogar segundo as regras da Elite — um gesto calculado para desmascarar a falácia por trás da violência legitimada.
Arte por Lee Bermejo e Doug Mahnke ( DC Comics )
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