Call Of Duty: Black Ops 7 por Activision
Não sou, nem nunca fui, um participante devoto do universo gamer. Minha relação com os jogos permanece situada na zona de interesse e, certamente periférico, diante das áreas em que de fato habito com mais propriedade: os quadrinhos, a publicidade, a arte sequencial. Ainda assim, permiti-me revisitar brevemente o recém-lançado Call of Duty: Black Ops 7, especificamente seu modo campanha, movido por uma espécie de saudades residual pelos enredos do Modern Warfare e pelos dois primeiros Black Ops, cujas narrativas, embora simples, sempre carregaram uma tensão dramática que me interessava mais do que qualquer apelo técnico atual dos jogos. O desconforto, no entanto, apresentou-se de imediato.
A franquia, já há alguns anos inclinada a uma espécie de dispersão identitária, de viagens ao espaço e futurismos, parece agora descolada de seu próprio eixo semântico: o “chamado do dever”, essa convocação que outrora posicionava o jogador no interior de uma guerra, tensa, política, dissolveu-se em um espetáculo ruidoso, uma colagem de excessos que pouco preserva da experiência original. Ver personagens como Harper (Black Ops II) e Woods (Black Ops I) metamorfoseados em criaturas agigantadas, floridas, quase barrocas em sua artificialidade, enfrentados em uma boss fight que mais se assemelha a um delírio plastificado do que a uma operação militar, foi testemunhar a ruptura definitiva com o espírito que consolidou a série. E o mais curioso, porém, não surpreendente, não foi minha própria reação, mas a resposta uníssona da comunidade gamer, que rejeitou veementemente esse desvio, como se todos reconhecessem, simultaneamente, que algo estrutural fora rompido.
Boss-fight de Harper em Call Of Duty: Black Ops 7
A menção a esse episódio não é por acaso. Na verdade, insere-se em um fenômeno mais amplo que atravessa a cultura geek e gamer, e que se estende, com igual intensidade, ao cinema, às séries, aos quadrinhos e à literatura. Assiste-se a uma tentativa recorrente de “reinvenção” que não amplia nem revitaliza, mas corrompe; uma desconstrução conduzida não como leitura crítica, mas como desmonte. Em vez de restauração, há demolição. Em vez de evolução orgânica, há substituição arbitrária. A metáfora é simples: ninguém reforma uma casa começando pela destruição de sua estrutura. Telhados podem ser trocados, janelas renovadas, portas modernizadas, cômodos ampliados, mas a planta, o alicerce, aquilo que sustenta o edifício, permanece. Quando se compromete o arcabouço que mantém a casa de pé, o resultado é o colapso, e, no caso da cultura pop, o abandono de seu próprio público.
Talvez resida aí o grande equívoco contemporâneo dos responsáveis por estúdios, editoras e grandes franquias: confundir atualização com descaracterização. Em vez de cultivar o que dá identidade a um título, optam por substituir justamente o que o tornava significativo. E, diante disso, não há inovação que prospere, apenas ruído, desordem e uma sensação crescente de que o essencial foi esquecido no caminho. Parte desse processo emerge de uma gana industrial típica do pós-capitalismo, uma volição quase automática, cega, em direção ao lucro.
Ilustração retirada da Geek-Art Agency ( https://geek-art.net/ )
Contudo, o empresário que persegue esse ganho imediato esquece que o lucro não nasce do vazio, mas da comunidade que já o sustenta: o público que ama a obra, o jogo, o título, o herói que ele próprio comercializa. Trata-se, portanto, de um equívoco de marketing no sentido mais profundo do termo: a incapacidade de ler o próprio público que se possui. Na ânsia de conquistar um novo consumidor, muitas vezes indiferente ou até alheio ao universo original da obra, sacrifica-se justamente o vínculo simbólico que mantinha o produto de pé. O resultado é previsível: perde-se o que se tinha, sem ganhar aquilo que se desejava.
Como alguém que vive a publicidade diariamente, minha sugestão aos responsáveis por essa leitura de mercado é simples: olhem novamente para as estruturas que tornaram o produto querido e resgatem-nas antes que tudo se perca na ânsia por inovação vazia. Há, inclusive, uma tendência movida pela nostalgia, a Marvel tenta reorganizar seus próprios fragmentos no cinema, e, nos games, vejo com bons olhos os remakes, que assumem um papel quase pedagógico ao apresentar títulos antigos em versões renovadas, despertando no público jovem o desejo de revisitar a obra original. É esse retorno à base, ao que sustentou o afeto inicial, que pode restabelecer a ponte hoje ameaçada entre criadores, marcas e seus próprios admiradores.
Spider-Man: No Way Home ( via: www.gamesradar.com )
Afirmo que o atual fervor nostálgico não é um desejo passivo de retorno, mas uma reação ativa à incompetência da indústria em gerir seus próprios legados. O público não está apenas saudoso; está órfão. Assassin’s Creed converteu-se no exemplo didático desse fracasso: abandonou a precisão que definiu a saga de Ezio para se tornar, em Shadows, um pastiche de RPG e soulslike, desprovido de personalidade. A antítese desse erro reside em Resident Evil, que, após flertar perigosamente com a ação genérica, compreendeu que sua sobrevivência dependia de um retorno radical às origens com o sétimo jogo. Essa capacidade de evoluir sem trair o DNA da obra é o que separa franquias imortais de produtos descartáveis, uma verdade que se aplica tanto aos videogames quanto à literatura e ao cinema.
Longe de mim, inclusive, defender a nostalgia como um refúgio na repetição, mas sim, como um vetor de inovação que projeta virtudes passadas no cenário atual. O obstáculo para essa realização reside nos imperativos do processo produtivo contemporâneo, onde a pressão por lançamentos constantes e a otimização de despesas sufocam o tempo necessário ao desenvolvimento artístico. O argumento tecnocrata de que 'o lucro paga as contas' é uma meia-verdade perigosa, na verdade, é o engajamento do público que viabiliza o negócio.O lucro sem público é uma impossibilidade aritmética. Trata-se do primeiro degrau de entendimento mercadológico, que acredito ser urgente os dirigentes culturais voltem a firmar o pé sobre ele.
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