Nunca vi a chuva: a juventude representada do desespero à esperança

Ficha Técnica:

Título Original: Nunca vi a chuva Autor: Stefano Volp Editora: Galera Gênero: Ficção/Romance Número de Páginas: 224 Classificação Indicativa: +16 anos Ano de Publicação: 2023 Sinopse: Lucas é um garoto à beira de cometer um grande erro. Quando se vê completamente sozinho e com um vazio no peito imparável, o jovem recebe uma mensagem misteriosa. A partir desse contato inesperado, uma relação de profunda amizade floresce entre Lucas e Rafael, dois garotos que possuem muitas semelhanças físicas, mas personalidades bastante diferentes. Em um romance epistolar repleto de sinceridade e reflexões, Nunca vi a chuvai faz o público refletir sobre temas importantes como saúde mental, adoção e o cotidiano de pessoas com deficiências.



Alerta de gatilho para a leitura: suicídio, drogas, automutilação. 



Resenha: É muito difícil não voltar a ser um adolescente enquanto se lê Nunca vi a chuva. O livro possui reviravoltas, mistérios e ótimas piadas, mas é na honestidade brutal da escrita de Nunca vi a chuva que o encanto surge. Lucas, o narrador da história, começa a escrever um diário e essa conversa, quase falando diretamente com quem lê, consegue chocar, entristecer e até mesmo confortar corações. 


O autor não esconde o peso da dificuldade que uma pessoa que sofre de transtornos mentais não diagnosticados enfrenta. Essa abordagem torna fácil sentir uma empatia enorme pelo Lucas. O sofrimento do amadurecimento vivido pelo jovem preocupa o leitor, como se o diário pudesse acabar de uma hora para a outra porque algo ruim aconteceu com o personagem. Esse aspecto remete muito ao que acontece nos capítulos finais de As vantagens de ser invisível, que é um ótimo livro para se ler depois de Nunca vi a chuva. 


“Acontece que não foi você quem, há algum tempo, ouviu seus pais conversarem no quarto sobre o diagnóstico terrível que sua tia, aquela que ninguém menciona, também tinha e que agora, mais do que  nunca, eles estão certos de que você também o carrega feito um parasita em sua mente”, p. 20


A trama realmente começa quando Lucas faz amizade com um jovem utilizando o hoje falecido Skype. Um jovem cego, morador de uma região interiorana não especificada nos arredores do Rio de Janeiro, começa a criar um vínculo cada vez mais profundo com o protagonista durante as videochamadas. É a partir dessa amizade que a trama surpreende os leitores quando Lucas decide sair de Portugal e ir ao Brasil para visitar o novo amigo. 

Ainda assim, o autor não esconde os lados negativos e as falhas do protagonista. Pelo contrário, a presença dessas características é um dos pontos fortes da trama. A teimosia e a arrogância de Lucas são resultado da repressão do lado mais sensível dele mesmo, remetendo muito a Holden Caulfield do clássico Apanhador no campo de centeio. Em 2022, Stefano Volp lançou a obra “Homens Pretos (Não) Choram”, um livro que aborda solidão e masculinidades negras por meio de uma série de contos. Há diversos ecos desses temas ressoando em Nunca vi a chuva, mas o diferencial da obra foco desta resenha é a excelente ambientação, transitando entre Portugal e o Brasil, e a presença de um personagem muito incrível: Rafael.


“Feliz Ano-Novo — brincou Rafael perto do meu ouvido. Me soltou e começou a rir sem parar. Depois sentiu meu rosto com os dedos de novo, sem pedir licença e me deu um novo abraço. E eu não gostaria de estar em nenhum outro lugar a não ser ali”, p. 70


Em geral, a ambientação na casa de Rafael é divertida e com tons de comédias cotidianas. Lembra-se muito de séries slice-of-life que veríamos na televisão anos atrás como A Grande Família ou Malhação. O livro possui esses respiros para deixar a relação de ambos ser construída com calma. Todos os diálogos entre os dois são muito críveis e divertidos, mas cercados de estranheza por ainda estarem se conhecendo. Vale destacar que os momentos mais bonitos do livro são quando Lucas e Rafael trocam experiências e aprendem juntos a perceber a beleza da vida. 


“Diário amigo, acho que descobri o verdadeiro aroma da simplicidade”, p. 84


A estrutura epistolar, aplicada aqui como um diário, combinou muito para construir o Lucas como um narrador não confiável, fragilizado e fácil de se identificar. A linguagem condiz com um narrador adolescente e possui um vocabulário dinâmico e fácil de compreender. É um livro que jovens e adultos poderiam desfrutar dele sem dificuldade, servindo até como um livro para se ler em um plano de leitura durante o ensino médio ou durante uma viagem longa. 


No entanto, essa linguagem focada no ponto de vista de Lucas possui um lado negativo: há muitos diálogos expositivos que soam deslocados em um diário. Embora o narrador trate o ato de escrever como conversar com uma pessoa, ainda parece estranho ele convenientemente apresentar certas informações a quem lê. Um exemplo é quando o jovem aponta o tempo exato da gravidez da mãe adotiva ou faz um resumo da relação que teve com uma ex-namorada ao falar dela. Não faz sentido o Lucas repetir para si mesmo detalhes como esses em momentos que estava fragilizado. Até porque há excelentes capítulos compostos de poucas linhas, em que Volp convida o leitor a imaginar o que aconteceu. 


“Mano, me desculpe por encher você de desgraças. Se eu fosse um cara sensível, eu derramaria lágrimas sobre você. Às vezes, dentro de mim, acho que eu sou mais sensível do que pareço. Até tenho vontade de chorar, mas as lágrimas não vêm. É como se eu não soubesse mais produzi-las”, p. 23


Além disso, há personagens que poderiam ganhar mais destaque, como Dona Ana, mãe do Rafael, e Lucinha, a empregada da casa de Lucas em Portugal, esta última desempenhando um papel quase materno para o jovem às vezes. Ambas as personagens parecem deixadas de lado. As duas pareciam ter muito mais a dizer sobre toda a situação dramática que envolve a conexão entre os dois meninos, mas isso não aconteceu. Ainda mais considerando que só sabemos das maiores inseguranças de Rafael e da família dele a partir do ponto de vista de Dona Ana. 


Por outro lado, vale elogiar a profundidade na qual a deficiência de Rafael é tratada nesta obra: de forma realista, leve e orgânica. Nunca vi a chuva também fez um trabalho muito responsável mostrando o quanto o personagem vai além desse aspecto. O jovem adora gravar vídeos cantando para o YouTube, tem uma timidez tremenda com as garotas, ama pudim e muito mais. Assim, Lucas e Rafael aparecem como complementos um para o outro. Isso tanto em personalidade quanto em estilo, já que o primeiro adora se vestir com roupas de marca, enquanto o segundo não liga nem um pouco para isso. 


“Rafael ficou me perguntando se ela já tinha sumido de vista e quando eu disse que sim, ele se jogou no chão imitando um desmaio exagerado. Me fazendo rir novamente e desejar que ele pudesse de fato recuperar a visão para enxergar o quão sortudo ele era por ter perdido o BV com uma garota tão gata. Ele ficou realmente nas alturas com tudo isso e… digamos que eu também”, p. 182


É importante dizer que, assim como a cegueira de Rafael é bem desenvolvida, o tema da adoção ganha a mesma atenção. Todas as discussões são trazidas de forma sensível, respeitosa e, principalmente, realista. Um exemplo é a ingenuidade de Lucas em achar que o sonho do Rafael seria achar os pais biológicos e ter uma cura para a própria deficiência, o que está longe da verdade neste caso. Ainda assim, ver o protagonista aprender com os próprios erros foi excelente e só o fez ganhar mais camadas de desenvolvimento ao longo da história. A relação do jovem com a mãe é uma das mais complexas e surpreendentemente bonitas dessa história, inclusive. 


Por fim, Lucas e Rafael em diversos momentos ressaltam o quanto olharem um para o outro é como se enxergar um espelho. O livro faz exatamente isso com quem lê também: nas páginas, muitos dos medos, inseguranças e dores da adolescência são refletidos de volta para que os leitores olhem para si mesmos


“Um dia, um amigo meu me disse que quando eu aprendesse a perdoar, seria um cara livre. E eu acho que a liberdade finalmente me alcançou porque eu tenho pra mim que aprendi a não apenas perdoar os outros, mas a perdoar a mim mesmo. A mim mesmo”, p. 199


Por fim, Lucas e Rafael em diversos momentos ressaltam o quanto olharem um para o outro é como se enxergar um espelho. O livro faz exatamente isso com quem lê também: nas páginas, muitos dos medos, inseguranças e dores da adolescência são refletidos de volta para que os leitores olhem para si mesmos



VEREDITO


Nunca vi a chuva ajuda o leitor a refletir sobre masculinidade, responsabilidade e, afinal, o que significa ser família. Neste romance de Volp, aprende-se que o amor é indispensável e que ter compaixão por si mesmo é um grande primeiro passo para perdoar e tornar a juventude um pouco mais tranquila. O livro deixa um mistério no final que fica à interpretação do leitor. Se a primeira leitura valeu a pena, o convite a uma releitura só faz empolgar.


NOTA: 9/10


Nunca vi a chuva é um romance do escritor, roteirista e diretor Stefano Volp. O livro foi originalmente lançado em 2017. O livro, na edição de 2023, foi fornecido para esta resenha e publicado pelo Grupo Editorial Record.


SOBRE O AUTOR

Stefano Volp é escritor, roteirista, diretor e jornalista. CEO da Breu Filmes, é autor de Homens pretos (não) choram (HarperCollins), O beijo do rio (HarperCollins), Santo de Casa (Record), Nunca vi a chuva e O segredo das larvas (Galera Record). O autor já escreveu artigos para a Folha de S.Paulo e Veja, além de colaborar em projetos de cinema e streaming, incluindo salas de roteiro para Netflix e Globoplay e a websérie Proteja os Seus Sonhos. Fundador da editora Escureceu e do Clube da Caixa Preta, Volp também organiza coletâneas e traduz ficção, com foco na valorização de vozes negras na literatura.


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