Arte por Alex Ross em Reign Of Tomorrow ( DC Comics )
Quando assisti a Superman, de James Gunn, senti um certo alívio ao perceber a direção que a DC parece finalmente adotar para seu universo. Não se trata, aqui, de julgar o filme, que, por si só, carrega falhas evidentes e está longe de alcançar qualquer ideal de perfeição, mas de reconhecer a intenção subjacente: a compreensão de que os heróis precisam voltar a dialogar com aqueles que mais necessitam deles. Crianças, adolescentes, jovens, o público que moldará o amanhã, são estes os verdadeiros destinatários da figura heroica, e é a eles que a narrativa deve oferecer um horizonte de otimismo, senso de justiça e formação moral.
O Superman que emerge dessa nova fase é, sobretudo, humano: falho, hesitante, mas movido por um esforço contínuo de se tornar melhor. É aquele que sempre foi nos quadrinhos. Uma figura que encarna o heroísmo não como espetáculo, mas como ética, uma necessidade inerente. Enxergo nisso não apenas uma tendência, mas uma necessidade clara do próprio mercado, que começa, enfim, a se afastar da sombra persistente do anti-herói corrompido para reencontrar o herói que inspira, especialmente quando se pensa no olhar infantil, que ainda percebe o mundo com a força transformadora da esperança.
Arte por Tom Grummett (2021) e cores de Rich Seetoo (2024) ( DC Comics )
Mas, para resgatar a figura do herói, é incontornável retornar ao contexto que o viu nascer. Superman foi concebido no rastro da Grande Depressão, em um cenário de fome, desemprego, pobreza generalizada e um sentimento coletivo de desesperança. Ao mesmo tempo, o fascismo ganhava corpo na Itália, o nazismo tomava as ruas da Alemanha, e a hostilidade contra imigrantes, somada ao racismo estrutural dirigido a negros e judeus, também se manifestava abertamente nos Estados Unidos. É nesse turbilhão que Superman surge, oferecendo ao leitor uma certeza de que ele não estava completamente sozinho. Jerry Siegel e Joe Shuster, ambos judeus e parte de uma minoria marcada por perseguições, criaram o personagem a partir de vivências que carregavam o peso da exclusão. Nos anos 1930, chegaram a esboçar uma versão inicial de Superman para uma revista de ficção científica que fracassou; nessa fase embrionária, ele assumia a feição de um antagonista, quase um vilão futurista. Com o tempo, porém, esse conceito foi sendo redesenhado, talhado e purificado até se tornar aquilo que conhecemos: não um agente da opressão, mas a projeção heroica de um desejo profundo de justiça e proteção.
Superman inicia sua existência nas tiras de jornal, em narrativas concisas onde, em poucos quadros, enfrentava o crime ordinário. O impacto foi imediato: o público reconheceu, naquele herói indestrutível, algo para além da força — a condição de estrangeiro. Um alienígena imigrante lançado em um mundo que nunca lhe pertenceu, mas que, paradoxalmente, o acolheu como símbolo. E, mesmo assim, ele permanecia humano em suas falhas: enganava-se, tropeçava, amava. Seu centro moral sempre fora o coração. Superman acreditava no bem como princípio ativo, quase inegociável. Surgiu para proteger os vulneráveis daqueles que, movidos pelo individualismo, buscavam erguer seus triunfos à custa do sofrimento do outro. O mal, nesse sentido, não era uma entidade mítica, mas a escolha de conquistar sem consciência, de avançar sem considerar a dor alheia. Superman ergueu-se precisamente contra isso, não apenas como defensor, mas como contraponto ético a uma sociedade inclinada à indiferença.
Arte por Joe Shuster ( DC Comics )
Ainda bem que a indiferença sempre foi coisa de adulto. Porque as crianças e os mais jovens não compartilham dessa rigidez emociona, veem o mundo sob uma ótica idealizada, onde explorar é natural e sonhar é um direito. Nelas, a alegria surge desarmada, autêntica, e é justamente nesse estágio da vida que imaginação e aprendizado se entrelaçam de forma decisiva para a formação do caráter. É justamente aí que o Superman se inscreve como figura orientadora, lembrando que a bondade não é ingenuidade, mas uma força transformadora; que fazer o bem ao outro é um gesto de coragem, sobretudo em um mundo habituado à indiferença e, tantas vezes, dominado pelo rancor, tristeza e ódio.
O herói, do Superman a Homem-Aranha, de Batman à Mulher-Maravilha, jamais foi cativante por ser “super”, mas por ser, antes de tudo, uma projeção ampliada da nossa própria humanidade. A cultura, ao longo das décadas, moldou e remoldou essa figura, mas há, hoje, ao meu ver, uma urgência palpável, uma necessidade de de coragem de contra-cultura que recupere o herói não como instrumento de poder, e sim como guardião de princípios. Um herói que não apenas enfrente monstros, mas sustente boas convicções, que pratique o amor ao próximo de forma incondicional, que sirva como bússola ética em uma era marcada por fragmentação e anestesia moral. Vivemos, sim, uma crise de valores, não apenas uma erosão das noções de moralidade, de bem e mal, mas uma crise alimentada pelo individualismo promovido pelo capitalismo tardio e pela globalização que dissolveu fronteiras, vínculos e responsabilidades em uma sociedade progressivamente líquida, novamente citando Baumann. Houve uma inflexão profunda na compreensão do que significa ser humano. Essa transformação pode ser fértil ou desastrosa, dependendo da direção que assumirmos e das vozes que escolhemos seguir. É precisamente por isso que o herói deve orientar as crianças, porque são elas que, até hoje, recordam aos adultos o significado de esperança e a capacidade de sonhar sem receio.
Arte por Steve Ditko ( Marvel Comics )
Por isso me incomoda quando os mais velhos repetem o bordão de que “a geração atual não faz nada”. É um fardo injusto, que exige das crianças que amadureçam antes da hora, uma pressa que rouba o próprio sentido da infância. O lugar delas é na escola, no brincar, no exercício livre da imaginação, na criação espontânea do seu herói interior. É ali, nesse espaço de leveza e descoberta, que se planta o futuro que ainda insistimos em exigir delas sem lhes dar as ferramentas para construir um mundo melhor. Acredito que verei, e farei o possível para contribuir, para que o herói e o próprio quadrinho retornem ao lugar que sempre lhes pertenceu: o imaginário das crianças. E Deus sabe o quanto este anseio, simples e profundo, é a minha vontade mais autêntica enquanto artista.
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